quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Revoluções enxadrísticas - Parte I

Nesta série de textos que pretendo publicar aqui no blog, irei abordar as principais revoluções dos conceitos estratégicos e ideais de jogo pelas quais o mundo do xadrez passou, ressaltando aspectos do contexto histórico de cada época. Os assuntos não seguirão a ordem cronológica da história do xadrez, podendo a parte II abordar qualquer outra revolução, mesmo que anterior ao xadrez hipermoderno. E, por último, os textos aqui publicados não são definitivos. Novas idéias e novas abordagens podem surgir para tornar os textos mais completos, pois ainda há muito que ler e pesquisar sobre a história do xadrez e os reflexos de suas idéias dentro e fora do tabuleiro. Desejo a todos uma boa leitura.


Uma abordagem histórica do surgimento do xadrez Hipermoderno


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança;

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,

Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,

E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,

Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce c
anto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.


Luís Vaz de Camões


Assim também é o xadrez que acompanha a humanidade da forma que o conhecemos hoje desde o século VI. De tempo em tempo mudam-se os conceitos, a visão e o ideal de jogo. E o jogo muda não só pela evolução do pensamento enxadrístico, mas também - e me arrisco a dizer que principalmente - pelas mudanças históricas e sociais ocorridas no decorrer dos séculos. O xadrez, assim como a literatura, não está alheio ao mundo que o circunda, antes é constantemente influenciado por ele e o influencia com o seu poder metafórico conhecido até mesmo por aqueles que não conhecem sequer os movimentos das peças.

"Um jogo complicado nas areias do deserto em 1991."
O poder metafórico do xadrez é amplamente utilizado em charges políticas.

Os conceitos do xadrez mudaram consideravelmente do século XIX para o XX, acompanhando as vanguardas revolucionárias que surgiram nessa época nas artes, nas ciências, na música. Essas vanguardas surgiram com maior intensidade após a primeira guerra mundial, que teve para a Europa resultado desastroso. A guerra, que a princípio era para ser breve, estendeu-se por longos quatro anos. Boa parte da luta passou-se nas trincheiras, onde centenas de soldados morriam todos os dias numa verdadeira carnificina. Ao final, o mundo se deparou com a falência de seus valores morais e religiosos. Nada conseguia explicar o que havia acontecido, nem mesmo a filosofia. O que se deu então foi a negação da cultura patrocinadora desse massacre. Em vista disso, uma nova arte era necessária: uma arte que rompesse com os padrões e princípios de então. A conseqüência foi o surgimento das inúmeras vanguardas em diversas partes do mundo. No xadrez a vanguarda ficou conhecida como hipermodernismo.


"Posição crítica no tabuleiro de xadrez europeu."


Os novos jogadores que surgiram com essa escola, traziam idéias que faziam total contraste com o ideal de jogo em voga na época. Uma delas é o controle do centro a distância. Até então, nas teorias de abertura, vigorava a idéia de que o centro do tabuleiro deveria ser ocupado por peões, por serem as peças de mais fácil manutenção, ou seja, não precisam se esquivar de ataques, pois basta defendê-los com eficiência. Uma estrutura forte de peões no centro garante maior espaço e, dessa forma, maior mobilidade para as peças. Com maior mobilidade de forças um ataque promissor pode ser iniciado. No entanto, com o advento do xadrez hipermoderno, liderado por Aaron Nimzowitsch, surgiu a idéia de que o centro pode ser controlado não só por peões, mas também a distância por peças.

Sabemos que o xadrez é essencialmente um jogo de guerra. Dois exércitos opositores lutam para conquistar espaço e adentrar o território do inimigo, ansiando a eliminação do reino adversário, simbolizado pela captura do rei: o xeque-mate. É, portanto, de se esperar que as mudanças na forma de guerra que ocorrem no mundo, influenciem de sobremaneira nas 64 casas do tabuleiro de xadrez. Podemos dizer que foi assim quando foram introduzidas armas de longo alcance, no início do século XX, capazes de acertar um alvo a 100km de distância nas sangrentas batalhas da primeira guerra mundial: o bispo fianquetado passou a funcionar como um míssil em direção ao centro do tabuleiro.

Uma defesa, introduzida pelos hipermodernos, em que podemos ver com clareza uma estratégia já utilizada em guerras históricas é a Defesa Alekhine. Nela o negro deliberadamente permite ao branco construir um forte centro de peões, criando a sensação no condutor das peças brancas de que possui grande vantagem de espaço por controlar as casas vitais do centro, ao mesmo tempo em que controla casas avançadas do campo inimigo.



Defesa alekhine
Posição após 1. e4 Cf6 2. e5 Cd5 3. c4 Cb6 4. d4


Na verdade o negro está tramando um ardiloso contra-ataque à cadeia de peões adversários com a intenção de criar fraquezas permanentes em sua estrutura. Essa estratégia é semelhante àquela utilizada duas vezes pelos russos, a primeira contra o poderoso exército francês de Napoleão Bonaparte, que era inclusive um comandante amante do xadrez, mas naquela época - infelizmente para ele - não se tinha conhecimento da defesa Alekhine. E a segunda contra o exército alemão de Hitler, mas dessa vez foi por puro desconhecimento de causa, pois Alekhine, nessa época, já tinha apresentado ao mundo sua defesa. Os russos permitem que seus adversários invadam seu território e recuam deixando no caminho dos soldados inimigos somente destruição, queimando as colheitas e as habitações. Então, os invasores se veem sem vilarejos para saquear e a comida se torna cada vez mais escassa. Com o acréscimo do inverno a situação se torna ainda mais caótica e os combatentes morrem de fome e de frio, entre outros males. Podemos constatar em conclusão que os russos deram uma grande lição nos seus adversários, utilizando a Defesa Alekhine.

E já que estamos falando de aspectos bélicos do jogo de xadrez, vale a pena indicar um artigo de autoria do enxadrista de Curitiba Sr. Henrique Marinho, no qual ele compara a formação militar Hedgehog (ouriço) com a estrutura de peões a6, b6, d6, e6 com a coluna "c" semi-aberta. Segundo Marinho, essa configuração pode ser originada da Abertura inglesa - Variante simétrica, da defesa siciliana - Variante Maroczy, de uma catalã ou de uma índia da dama, mudando somente a posição dos peões brancos, pois os peões negros permanecem na estrutura acima citada. Nessa posição o branco se encontra com mais espaço, restringindo as peças negras. No entanto a estrutura negra é bastante sólida e nela se esconde um grande potencial de contra-ataque. O texto é recheado de detalhes filosóficos que o deixam ainda mais interessante. Confira o artigo no link: http://www.cxc.org.br/arquivos/Hedgehog.pdf

Outra mudança fundamental introduzida pelo xadrez hipermoderno, além do já citado controle do centro a distância, foi a de que cada posição possui suas características próprias e, portanto, devem ser analisadas individualmente, longe dos preceitos rígidos e conservadores preconizados por Stenitz e seguidos a risca pela maioria dos jogadores de elite da época. "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades" como diz Camões em seu soneto. Os tempos mudaram e novas necessidades surgiram junto com novas idéias. Muitos jogadores como Tarrasch, seguidores de Stenitz, ficavam apavorados com a forma de jogo dos hipermodernos Nimzowitsch, Grunfeld, Samisch, Reti, entre outros. Tentavam rechaçar suas idéias de forma veemente e mordaz, assim como os adeptos dos novos tempos repudiavam as idéias ortodoxas em atitude iconoclasta (qualquer semelhança com a semana de Arte Moderna de 22 no Brasil não é mera coincidência). No entanto, Alekhine, ao vencer o Cubano José Raul Capablanca em 1927, sacramentou a vitória do xadrez hipermoderno.

Depois do surgimento do xadrez hipermoderno, a próxima grande revolução no mundo do xadrez ocorrerá com o aparecimento do fenômeno Estadunidense Robert James Fisher que tomou dos russos a posse da coroa de campeão mundial em meios a guerra fria em 1972, mas que depois passa a coroa para Anatoli Karpov sem jogar e desaparece do cenário enxadrístico internacional. Bobby Fisher assombrou o mundo ao derrotar a máquina de xadrez soviética com um xadrez em que o poder da iniciativa tinha papel fundamental... Mas esse assunto fica para um futuro post.


Referências:

SHENK, David. O jogo imortal. Jorge Zahar Ed. Rio de Janeiro, 2007.

NIMZOVITSCH, Aaron. Meu Sistema. Ed. Solis. Santana da Paraíba - São Paulo, 2007.

PEREIRA, Ernesto Luiz de Assis. O centro e a natureza da luta no xadrez. in: 64.233.163.132/search?q=cache:EifkGE28n1sJ:www.cxc.org.br/arquivos/CONTROLE.doc+o+centro+e+a+luta+xadrez&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br Acesso em: 11 de Janeiro de 2010.

PÉCHINÉ, Jean Michel. Chess is a war game. in: www.chessbase.com/columns/column.asp?pid=166. Acesso em 12 de janeiro de 2010.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. Ed. Cultrix. 1997